Virgínia Bicudo é um ícone na História das Ciências Sociais do
país.
Acompanhe a 1ª pesquisa de mestrado do Brasil.
Antes
de iniciar o desenvolvimento deste texto, é muito salutar que ressaltemos a
importância desta obra prima da Literatura Brasileira. É de suma importância
frisar a relevância do trabalho de Virgínia Bicudo para as Ciências Humanas do
Brasil, em especial para a USP. Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São
Paulo, publicada em 2010 pela Editora Sociologia e Política, é uma contribuição
notável para as ciências humanas do país que além da qualidade textual do
material, o fato de Virgínia Bicudo ter pertencido à primeira turma de mestres
formados no Brasil, juntamente com Oracy
Nogueira e Gioconda Mussolini, na Divisão de Estudos de
Pós-Graduados da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, deixa a
leitura ainda mais estimulante.
Virgínia
Bicudo era filha de uma mulher branca e pobre que descendia de italianos e que
se casou com um negro afilhado de fazendeiro de café. Filha mais velha de um
total de seis irmãos, Bicudo morava em um bairro popular da Luz na Cidade de
São Paulo e entrou para o curso de Ciências Sociais para vencer o preconceito
racial que sofria desde criança. Bicudo trazia os traços marcantes de seu pai
que era negro e por muitas vezes falou no sofrimento como um importante motivo
para sua opção pelo curso de Sociologia da Escola Livre de Sociologia e
Política – ELSP da USP.
Virgínia
trabalhou na pesquisa entre os anos de 1941 e 1944, apresentando sua
dissertação de mestrado em 1945, tendo como orientador acadêmico o Norte
Americano Donald Pierson, personalidade integrante da reconhecida Escola de
Chicago que pode ser mais facilmente compreendida através da conferência
proferida por Howard Becker no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
do Museu Nacional/UFRJ, durante sua última visita ao Brasil. (Becker, 1996).
Bicudo introduziu a interdisciplinaridade ao trabalhar simultaneamente com
Sociologia, Antropologia e Psicologia Social. O desenvolvimento do seu trabalho
demonstrou um universo dividido em classes devidamente representadas pelos
negros, pelos mulatos e pelos brancos e juntamente com o trabalho de Oracy
Nogueira, (Nogueira, 1942) apresentou fatos que levavam a crer que mesmo com a
redução das diferenças sociais, o preconceito de cor ainda persistia no Brasil,
ou pelo menos em São Paulo, local onde realizou sua pesquisa. Um fato importante de se ressaltar é que nesse ponto,
sua pesquisa se distanciou dos resultados apresentados por seu orientador,
Donald Pierson, pois segundo ela, os processos de ascensão social não cancelam
as marcas raciais, posição destoante apresentada por seu orientador estadunidense
(Piersons, 1942). O fato da pesquisa de Pierson ter sido realizada na Bahia,
enquanto a de Virgínia fora feita em São Paulo, contribuiu para a distinção
entre os resultados, entretanto, ambos representam as realidades locais que não
podem ser desconsideradas para a compreensão global do tema.
Ainda
há outro aspecto que torna o trabalho de Bicudo ainda mais relevante, pois
durante as décadas de 40 e 50, o Brasil era visto como um território livre do preconceito
racial, onde as relações inter-raciais fluíam naturalmente e a miscigenação
prevalecia sobre o etnocentrismo. (Maio, 1999). Pelo menos essa era a visão que
havia sido consideravelmente influenciada pelo trabalho de Gilberto Freyre,
realizado em Pernambuco, publicado em “Casa Grande & Senzala” no ano de 1933
sendo considerada a maior contribuição de Freyre para o entendimento da
formação social do Brasil patriarcal, escravocrata e miscigenado. (Freyre,
2006) Esse contexto de “paraíso racial” motivou a UNESCO a patrocinar um grande
projeto tendo como ponto central o este país miscigenado explicitado por
Gilberto Freyre. Entretanto, de acordo com os estudos de Bicudo, o preconceito
racial era uma realidade no país e se diferenciava do preconceito de raça ou do
preconceito de classe, constatação esta que foi distinta do contexto
motivacional do Projeto
UNESCO. Segundo Marcos Maio, que escreve a introdução da edição de
Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo lançada em 2010, Bicudo
apresentou reflexão inovadora, ao considerar a cor como importante variável na
produção de desigualdades sociais. Sua arguta análise sociológica antevê
interpretações realizadas apenas na década de 50, depois da influência dos
estudos incentivados pelo Projeto UNESCO.
O
livro é fruto de sua dissertação de mestrado que consiste num trabalho muito
denso, mas que é apresentado de forma muito clara por Virgínia e está dividido
em cinco etapas, onde a autora coletou depoimentos de pretos e mulatos oriundos
de classes sociais distintas. Bicudo expõe inicialmente os depoimentos
coletados de indivíduos pretos de classe social inferior e de classe social
intermediária. Logo depois, descreve os relatos de indivíduos mulatos de classe
social inferior e intermediária e por último apresenta os depoimentos obtidos de
integrantes de uma associação de negros.
Livre de todos os ajustes e acomodações que
imperam nos tempos atuais, procurarei manter as descrições fidedignas com o
linguajar apresentado por Bicudo. Por esse motivo, o leitor encontrará palavras
como preto, brancos, mulatos, elementos de cor, etc, no decorrer deste ensaio.
Acredito ser necessário preservar o contexto histórico, além disso, compartilho
da ideia que, demonstra-se mais intensamente uma atitude racista se referir a
alguém pela designação “moreno” utilizando entonação desdenhosa do que quando
se refere respeitosamente aos descendentes africanos por pretos ou negros.
A
partir dos depoimentos obtidos dos indivíduos pretos de classe inferior, Bicudo
concluiu que há uma distância social entre os entrevistados dessa classe. Isso
porque ela identificou uma atitude de rivalidade entre os negros de classe
inferior. Por haver essa antipatia e até o sentimento de inveja entre os indivíduos
pretos de classe inferior, o que se notou, foi uma maior afinidade na relação
entre pretos e brancos. Além disso, os pretos dessa classe demonstraram se
sentir mais feridos pelo desprezo demonstrado pelos próprios pretos do que
pelos possíveis embates com os elementos brancos. A atitude de antagonismo do
preto para com o preto resultaria em falta de solidariedade, segundo Bicudo, enquanto
que a simpatia para com os brancos não somente torna os pretos mais tolerantes,
como também reduz as hostilidades entre pretos e brancos, fato que não elimina
o sentimento de superioridade por parte dos brancos.
Já
para os entrevistados pretos de classe intermediária, Bicudo observou que as
atitudes ligadas à cor eram mais pronunciadas em relação aos pretos de classe
inferior. Bicudo concluiu que os pretos de classe intermediária tem sentimento
de mágoa e revolta em relação ao branco, entretanto esses sentimentos são
conscientemente reprimidos pelo medo de provocar atitudes de rejeição mais
acentuada entre eles. Outro fato que contribui para essa repressão está no
mecanismo psíquico que os pretos introjetam depois de um longo convívio com os
brancos. Esses pretos acabam tendo um ponto de vista deturpado onde prevalece a
visão do branco, os indivíduos engendram seus pensamentos, suas
percepções e suas ações a partir de um sistema de esquemas interiorizado ou
profundamente internalizado definido por Bourdieu como habitus. (Bourdieu apud Miceli, 2007) Em outras palavras significaria
dizer que os pretos adquirem habitus
de brancos, vendo-se a si próprio como branco e desenvolvendo suas relações a
partir desse ponto de vista.
Ainda
em relação aos pretos de classe intermediária, percebe-se que a conquista de um
diploma de nível superior ou de um cargo de responsabilidade, não garante ao
preto a satisfação de ser aceito socialmente sem restrições. Este indivíduo,
estando frustrado, mesmo depois de sua ascensão, se isola do branco a fim de
evitar o sofrimento de ser rejeitado. Nesse tipo de classe social percebe-se um
desejo latente por organização racial semelhante a que se tem nos EUA. Onde há
uma esperança de que essa segregação poderia construir uma armadura coletiva em
favor das minorias, dentro da qual os grupos poderiam satisfazer seus desejos
vitais.
Para
os mulatos de classe social inferior, Bicudo concluiu que demonstram
consciência de cor através de atitudes orientadas no sentido de evitar a ofensa
de ser chamado de "Preto". Em um dos relatos, uma mulher descarta a
possibilidade de se casar com alguém de cor de pele mais clara que a sua
justamente para não correr o risco de ser chamada ofensivamente de “preta”
diante de uma discussão familiar. Segundo Bicudo, a consciência de cor
apresenta-se mais acentuada no mulato do que no preto, talvez devido à situação
biológica de estar ligado aos dois grupos raciais. Para Bicudo, o mulato,
sentindo-se com mais direito de ser branco, têm mais consciência das atitudes
de restrição empregadas pelos brancos em relação aos não brancos.
Já
mediante aos depoimentos de indivíduos mulatos pertencentes à classe social
intermediária, Bicudo percebe forte presença do “preconceito de marca”, para
usar o termo descrito por Oracy Nogueira. (Nogueira, 1998), onde as
características físicas dos indivíduos são mais preponderantes do que a sua
ancestralidade no tocante à descriminação. Em um dos depoimentos, uma mulher
diz não ser capaz de amar um preto ou um mulato, contudo, desde que não se
percebam os traços físicos de preto, ela se casaria com tal pessoa. Neste caso,
se um ascendente de preto apresentar traços de branco, ele se passa por branco.
Para Bicudo, os mestiços de classe social intermediária manifestam atitudes que
revelam sentimento de inferioridade, vergonha de sua origem. Possuem um desejo de
passar por branco, chegando a se verem como brancos e dando ênfase ao fato de
que o povo brasileiro é essencialmente mestiço. Essas atitudes revelam que o
mulato é discriminado na medida em que lembre sua origem africana,
principalmente pela cor. Para Bicudo, a cor representa o mesmo característico
das classes sociais, no sentido de poder ser superada, constituindo, portanto,
um dos fatores a se levar em conta na determinação do status social. As
atitudes de consciência de cor do mulato, apesar de integrado ao grupo branco,
seriam manifestações do fenômeno semelhante àquele apresentado pelos indivíduos
que subiram de uma classe para outra.
Além
dos depoimentos dessas quatro “classes”, pretos de classe inferior, pretos de
classe intermediária, mulatos de classe inferior e mulatos de classe
intermediária, Bicudo apresentou resultado de coleta de dados entre indivíduos
pretos que pertenciam ao movimento social dos negros, chamado por Bicudo pelo
pseudônimo de “Associação de Negros Brasileiros”, uma organização que se
desenvolveu em São Paulo entre 1931 e 1937 que tinha como um dos principais
objetivos promover melhores condições econômicas para os pretos que
comprovadamente ocupavam em sua grande maioria as camadas mais baixas do
trabalho, além da luta pela valorização social como um todo para os pretos.
Bicudo
reuniu o material da “Associação dos Negros Brasileiros” a partir de
depoimentos dados por integrantes do movimento e por opiniões emitidas por
estes através da publicação de um jornal mensal editado pela Associação.
Segundo Bicudo, os indivíduos mulatos que pertenciam à classe social
intermediária e elevada não faziam parte da associação. Assim sendo, como os
integrantes mulatos participantes pertenciam a camada inferior, foram
considerados pretos.
Para
Bicudo, aquele isolamento cultural deixou de existir e muitos nativos receberam
educação das duas culturas. Esses indivíduos culturalmente híbridos se tornam
marginalizados em ambas as culturas, sentindo-se estranhos nas duas. Diante
desse fato, surgem líderes que se incumbem de reunir estes seres marginalizados
culturalmente aumentando a consciência de grupo, enchendo-os de sonhos e
aspirações.
Assim,
a “Associação de Negros Brasileiros”, apresenta-se como um ensaio de um
movimento coletivo, liderados por indivíduos negros conscientes de seu status
ligados à barreira da cor. Conclusão que corrobora o fato de indivíduos negros
pertencentes a classes superiores não terem se interessado pela questão da
Associação. Eles não sentiram a necessidade de se agremiar a associação exatamente
pelo fato de serem mais bem aceitos no grupo dominante devido ao seu status
social.
Atitudes Raciais de Pretos
e Mulatos em São Paulo é literatura obrigatória para interessados em
História, Relações Raciais, Psicologia, etc. Além disso, é uma excelente
oportunidade de conhecer os contornos racistas a partir da opinião dos próprios
indivíduos negros do país, outrossim, a publicação de uma das primeiras
dissertações de pós-graduação realizadas no Brasil já é um grande motivo para
se debruçar sobre a obra de Bicudo.
Boa leitura e boas indagações!!!
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