Sacrifício e vida entre os Índios Arara
Ieipari é um livro escrito originalmente como uma tese para
obtenção do título de doutorado por Mármio Teixeira-Pinto, paulista, formado em
Ciências Sociais pela Universidade de Brasília e mestre pelo programa de
Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ. Segundo o próprio Mármio, o tema
central do livro, fora dos limites da academia, pode suscitar leituras e
reações inesperadas, pois o sacrifício ritual de inimigos, a captura e o uso
cerimonial de trofeus humanos, podem, aos olhos não iniciados, se apresentar
como violência injustificável, mas que no estudo da cosmologia indígena pode
ser mais bem interpretado.
A etnografia trata dos Arara, um povo pequeno,
falante de uma língua de família Caribe, mas que se diferencia daquelas das
regiões alto-xinguana e norte-amazônica. Ainda quase desconhecidos na
literatura, os Arara tornaram-se famosos na década de 1970 pela extrema
resistência que opuseram às muitas tentativas de atração por parte da FUNAI.
Desde o final dos anos de 1960, com suas terras sendo rasgada pelas obras de
construção da rodovia Transamazônica os Arara passaram a oferecer resistência
aos brancos de forma crescente e muitas vezes violenta. A guerra de tocaia e a captura
de troféus humanos, práticas tradicionais nas muitas escaramuçadas
inter-tribais que marcaram o interflúvio Tocantins-Tapajós-Xingú, agora faziam
do branco um protagonista habitual dos combates e mortes rituais reservadas aos
inimigos tradicionais.
Outro aspecto importante na personalidade dos Arara
consiste na sua polidez e delicadeza com que lida no seu cotidiano. Face
revelada posteriormente ao contato que se estendeu entre 1969 e 1987. Tanto a
cortesia e a generosidade nos seus atos são tão marcantes quanto a forma brutal
de concretizar seu ritual. Mármio Teixeira-Pinto procura descrever e analisar o
contraste entre essa docilidade dos índios e as ações brutais associados aos
rituais de captura e sacrifício. Entretanto, Mármio alerta que o livro se detém
aos temas associados ao poste cerimonial ïpari,
cuja intenção é apenas a de se compreender um povo ainda pouco conhecido na
literatura especializada, não pretendendo estabelecer uma discussão teórica,
nem mesmo em encerrar os Arara numa espécie de ficção particularista. O
horizonte, segundo o próprio Mármio descreve, é puramente etnográfico: o troco
ritual de ïpari e seu valor
descritivo estratégico.
Segundo ele, os temas associados ao poste
cerimonial permitem que muitas das questões levantadas pela etnologia recebam
um tratamento local mais detalhado, mostrando que os valores éticos polares dos
Arara são como fatores de agregação/atração ou dispersão /repulsão em relação
ao socius. Neste sentido, mostrar-se-á que não há de fato uma marcação rígida
que oponha de forma simples o interior e o exterior da sociedade, mas uma
dinâmica bem mais complexa pela qual as relações sociais derivam de uma espécie
de pacto ou contrato social definido como adesão voluntária dos seres.
Como quase todos os rituais Arara conhecidos, a
cerimônia do poste ïpari, denominada Ieipari ou a festa de Ieipari , também se realiza
durante a estação seca, o verão na Amazônia. Período do ano compreendido entre
os meses de maio e outubro. A seca é a estação em que os Arara realizam as
grandes caçadas coletivas que devem preceder as grandes festas. A cerimônia de ïpari é um rito de organização complexa,
incluindo etapas e momentos diversos que transcendem o evento peculiar
associado ao poste. As grandes reuniões Arara giram em torno das bebidas, das
músicas e das carnes que os caçadores trazem, porém, cada um desses elementos,
individualmente, pode estar associado a uma pequena festa, mas quando estão
organizados juntamente, caracterizam uma grande reunião. Em outras palavras, é
como se o caráter ritual das grandes reuniões se revelasse apenas nas propriedades
rituais desse conjunto.
Associado tradicionalmente às partes dos corpos dos
inimigos tomadas como troféus, o poste Ieipari
uma vez preparado, devia permanecer
no centro da aldeia até que a madeira, já apodrecida, não mais sustentasse no
seu topo a razão e o motivo de sua elaboração: o crânio ornamentado de um
inimigo morto. A elaboração do poste Ieipari
não se seguia imediatamente à morte de um prisioneiro: vários e diferentes
momentos rituais ligados à guerra, à captura e à morte um inimigo marcavam
as etapas e os processos a que os troféus humanos estariam submetidos antes que
Ieipari
pudesse ser levantado. o
objetivo das operações de guerra podiam incluir, ou não, prisioneiros, mas
estes jamais seriam levados com vida à aldeia. Idealmente capturado ainda vivo,
ainda que mortalmente ferido, o inimigo seria segurado ou amarrado por um dos
parceiros para que o outro pudesse flechá-lo. Além do coração, o fígado era
normalmente um dos alvos que deveriam ser atingidos. Isso porque a visão Arara
sobre os processos vitais prende o coração ao fígado: um como motor das
substâncias que o outro produz ou transforma a partir do que ingere. Portanto,
da energia que o coração faz circular, o fígado é a razão da força vital dos
seres.
A morte de um inimigo deveria ser precedida, ou
seguida, caso já fosse capturado moribundo, por um rito sumário que o
preparasse para o seu esquartejamento posterior. Tudo se passava na mata, um
inimigo só deveria entrar na aldeia como um troféu. Morto ou agonizante, o
inimigo devia receber a mensagem a mensagem da música que o sentenciava a morte
e a retaliação. Após a música, o infeliz era esquartejado: tiravam-lhe a
cabeça, as mãos, os pés, as vísceras (Fígado e Coração). Idealmente, apenas
dois parceiros davam destino à vítima: um segurava e o outro retalhava o corpo.
Terminada a execução, aplicam-se aos parceiros apenas restrições de ordem
sexual: matadores não podem ter relações sexuais com a própria esposa, mas
devem ter com a esposa do parceiro que lhe ajudou a matar o inimigo. Isso
porque a execução conjunta os igualava em substâncias, de forma que sangue e
esperma de um seriam iguais a sangue e esperma de outro.
A música servia para duas coisas: resignar os
matadores, colocando a culpa no inimigo que procurou a morte ao ficar andando
por aí e para transferir o poder de matar da onça para os executores. O produto
da execução do inimigo são as partes fracionadas do seu corpo. Das partes
retalhadas, somente as mãos, os pés e a cabeça tinham proveito, todo o resto
era desprezado na mata para que as feras devorassem. Os ossos das mãos e dos
pés eram separados da carne e depois guardados sacolas de fibra ou viravam
atrativos pessoais de executores ou de suas esposas.
O crânio tinha um destino bem mais complexo. Com
orifícios tapados por uma cera, maxilares atados por uma fibra de algodão, com
uma taboca enfiada pelas ventas, o crânio se transformava num instrumento
musical. Segundo Teixeira-Pinto, não certeza nos relatos, entretanto há
indícios que o tocar esse instrumento serviria de remédio para os casos de
enfermidade provenientes da caça do veado. Mas essa função era apenas
transitória, pois depois de ressoar na música do veado, os crânios eram
ornamentados tornavam a ter a figura de uma cabeça novamente. Sem a taquara nas
ventas, com escalpo novamente e pintado adequadamente, o crânio estava pronta
para o segundo estágio do ciclo ritual: a figuração ïpari no poste cerimonial. Transferido para o topo do poste
cerimonial, o crânio do inimigo morto voltava então a ser cabeça de um
personagem, ao redor do qual se organizaria nova celebração.
Daquele poste pelado, que então sobre o topo
carrega o crânio decorado de um inimigo morto, contra o qual já tinham roçado a
pelve, agora tomam as mulheres um filho. A frase que elas pronunciam depois de
ingerirem a bebida é: “estou bebendo um filho... bebo um recém-nascido...” A
cerimônia trata mesmo de trazer filhos aos Arara, pois na cosmologia dos Arara,
a lama que se cimentou o poste é o sêmen de ïpari,
a parte da casca que sobra do tronco depois de esfolado é seu pelo, esses pelos
são da cabeça de uma criança que emana do sola, e como do solo que os vegetais
extraem as substâncias que através das bebidas, serão transformadas em sêmen,
que será transformado em gente.
Depois de entrarem na aldeia pomposamente, os
homens instalam o poste na cova devidamente preparada. A partir disso, o poste
já é chamado ïpari, pois o termo de
referência ao poste normalmente é Ieipari , enquanto que o tratamento é ïpari. Então, os pais põem os filhos
para acariciarem o poste em demonstração de carinho. Encontram, abraçam o
tronco até que dois homens se aproximam com porretes e começam a surrá-lo
enquanto dão risadas sarcásticas. Depois de esfolarem o poste e descascarem a
partir de um palmo do chão, todos passam a se esfregar nele com certa volúpia,
principalmente as mulheres. Depois da esfregação, o poste é lavado pelas
mulheres e os homens começam a dançar ao redor dele.
Todos trazem bens e pertences para ornamentar o
poste, enquanto o xamã traz o ornamento maior. O crânio decorado que depois de
ser posicionado no alto do poste, recebe uma coroa de penas de araras
vermelhas. No relato de Teixeira-Pinto,em todas as cerimônias que ele
presenciou, o ornamento que foi posicionado no alto do poste havia sido construído
em argila, mas os Arara garantiram que não haveria diferença caso possuíssem um
troféu humano.
Os homens agora cantam e dançam para ïpari. Enquanto tocam diversas flautas,
há uma sucessão de danças, revezados entre homens e mulheres. A sinfonia das flautas
chega ao auge na alta madrugada. Quando a aurora se aproxima, é hora de
preparar a chegada dos caçadores. Estes, trajando perucas de penas e saiotes de
palha se aproximam por detrás das casas na companhia de suas mulheres e filhos.
Eles envolvem o tronco cantando e dançando. Há também toda uma dinâmica que
envolve um oferecimento de bebida, agenciado pelos laços de parentesco, para
organizar a cosmologia da fertilidade Arara. Após sorverem doses significativas
de bebida, os caçadores e suas famílias devem se retirar novamente, retornando
para seu acampamento nos arredores da aldeia, enquanto isso, a festa continua,
atravessando toda a madrugada e a manhã seguinte.
O início da segunda noite revelará o último gênero
de expressão da cerimônia: agora são as mulheres que entram de forma triunfal
na aldeia de posse dos seus instrumentos de trabalho (hoje, facas e facões).
Dançam em sentido contrário ao realizado pelos homens e também cantam a canção
de ïpari. Então, as mulheres recebem
grande quantidade de uma bebida que faz com que elas comecem a pronunciar
frases que segundo eles englobam o conjunto de toda cerimônia.
Daquele poste pelado, que então sobre o topo
carrega o crânio decorado de um inimigo morto, contra o qual já tinham roçado a
pelve, agora tomam as mulheres um filho. A frase que elas pronunciam depois de
ingerirem a bebida é: “estou bebendo um filho...bebo um recém-nascido...” A
cerimônia trata mesmo de trazer filhos aos Arara, pois na cosmologia dos Arara,
a lama que se cimentou o poste é o sêmen de ïpari,
a parte da casca que sobra do tronco depois de esfolado é seu pelo, esses pelos
são da cabeça de uma criança que emana do sola, e como do solo que os vegetais
extraem as substâncias que através das bebidas, serão transformadas em sêmen,
que será transformado em gente.
Associa-se, portanto, àquele tronco elaborado a
partir dos troféus humanos um vasto conjunto de temas: a cerimônia do poste ïpari, a grande reunião em torno do
crânio de um inimigo sacrificado, combina a morte e o esquartejamento do
inimigo à produção e reprodução do mundo Arara, através da caça, das bebidas,
das parcerias, dos troféus humanos, da relação entre afins, etc.
Segundo Teixeira-Pinto, ïpari expressa uma concepção e um estilo de vida que organizam as
representações sobre o cosmos e a sociedade e encontram sua expressão mais fina
e acabada no conjunto de valores que circunscrevem e definem o poste ritual, em
torno do qual se consolida a oportunidade de celebrar Ieipari .
Quanto às notícias mais notórias que foram publicadas
sobre os Arara, aquelas referentes às mortes de pessoas envolvidas com a
construção da rodovia Transamazônica, que, na ocasião, classificaram os Arara como violentos e
brutais, se faz necessário esclarecer que, na realidade, o que aconteceu foi uma
inversão: foi ao homem branco que se concedeu um lugar no espaço semântico
circunscrito pela categoria ïpari,
cujo escopo era o tronco ritual, revivido. Não é o poste que se torna como
equivalente ao branco, mas o branco que foi introduzido ao tema central do rito
Ieipari.
Em resumo, o tronco cerimonial de ïpari é emblema desta vida porque além
de exibir ali o princípio do mundo, quer trazer filhos, fazer gente, pois é
preciso fazer mais gente para fazer crescer aqueles que os Arara deixam no
chão, para que o povo das araras (os Arara), persistam. O abraço apertado das
mulheres, o roçar de suas vulvas no tronco pelado sobre o qual jaz uma cabeça
humana decepada, é, então, sua maior função expressiva: afirmar o desafio
reprodutivo de ter de ser violento para produzir os termos das relações que
podem tornar as ações humanas mais generosas e solidárias.
Sem dúvida, a vida indígena parece ser muito diferente da nossa, entretanto somente o é em alguns aspectos. Espero que tenham gostado desta introdução e que essa leitura incentive novas aventuras antropológicas.
Um grande abraço e boas indagações.